Ambiente Jurídico

Litigância e justiça climática: Iniciativa Vanuatu e os direitos das gerações futuras

Autores

  • Gabriel Wedy

    é juiz federal professor nos programas de pós-graduação e na Escola de Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) pós-doutor doutor e mestre em Direito Ambiental membro do Grupo de Trabalho "Observatório do Meio Ambiente e das Mudanças Climáticas" do Conselho Nacional de Justiça visiting scholar pela Columbia Law School (Sabin Center for Climate Change Law) e pela Universität Heidelberg (Institut für deutsches und europäisches Verwaltungsrecht) autor de diversos artigos na área do Direito Ambiental no Brasil e no exterior e dos livros O desenvolvimento sustentável na era das mudanças climáticas: um direito fundamental e Litígios Climáticos: de acordo com o Direito Brasileiro Norte-Americano e Alemão e ex-presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe).

  • Ramiro Peres

    é analista do Banco Central pós-doutorando na Universidade Nova de Lisboa vice-coordenador do GEP Riscos Globais (Ieac/Unifesp) e associado da Associação Soluções Inclusivas Sustentáveis (SIS).

  • Luciane Moessa

    é Ph.D. pós-doutora em Direito Econômico e Financeiro (USP) membro do International Center for Comparative Environmental Law e diretora executiva e técnica da Associação Soluções Inclusivas Sustentáveis (SIS).

4 de março de 2023, 8h00

O agravamento do aquecimento global não traz apenas o aumento dos eventos climáticos extremos, mas novos insights sobre as teorias da justiça climática. Em 20 de fevereiro, dezoito Estados-membros apresentaram oficialmente, no portal e-deleGATE das Nações Unidas, a última versão da Iniciativa Vanuatu. Trata-se de um projeto de resolução a ser apresentado à próxima Assembleia-Geral, prevista para o final deste mês, com a finalidade de submeter à Corte Internacional de Justiça um pedido formal de parecer consultivo sobre as obrigações dos Estados-membros a respeito das alterações climáticas. O texto inova ao solicitar um detalhamento sobre as consequências legais, para os Estados emissores, em relação aos danos sofridos, no presente e no futuro, por nações vulneráveis e pelas gerações futuras. Como Portugal é um dos proponentes (que o documento chama de "nações-campeãs"), há inclusive uma versão em português do texto que pode ser facilmente acessada.

Spacca
Há boas chances de a Resolução ser aprovada. Tanto a Comissão de Direitos Humanos (Resolução 50/9) como a Assembleia-Geral (Resolução 300) da ONU têm declarado que as mudanças climáticas afetam direitos humanos, e o Secretário-Geral António Guterres tem enfatizado constantemente os direitos das gerações futuras. Até a votação, a proposta permanecerá aberta para receber o apoio de outras nações que desejem assumir um papel de liderança na política climática global. O Brasil, candidato a sediar a COP 30 do Clima em 2025, pode aproveitar essa oportunidade única para sinalizar sua postura em defesa do meio ambiente e da tutela do sistema climático e, igualmente, reassumir o protagonismo na defesa do desenvolvimento ecologicamente sustentável perdido nos últimos anos de obscurantismo político.

A litigância climática, como se sabe, importante sempre enfatizar, é uma realidade no país, inclusive no aspecto doutrinário [1]. Em 2022, o Supremo Tribunal Federal (STF), na ADPF 708, considerou o Acordo de Paris um tratado de direitos humanos, que se sobrepõe, portanto, à legislação ordinária federal (i.e., com status supralegal). Quanto às gerações futuras, a Constituição Brasileira (no artigo 225) reconhece deveres explícitos para com elas; inclusive, há litígios instaurados para a reparação de danos ambientais que discutem a inclusão e fixação de um "preço do carbono" no valor da indenização (ex.: a ação nº 1005885-78.2021.4.01.3200). Esse tema, aliás, foi abordado em consulta pública recente realizada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Ora, um dos componentes desse cálculo, segundo a abordagem do custo social do carbono (fixada na Guia de Análise de Custo-Benefício [2] para projetos de infraestrutura do Ministério da Economia), é justamente a estimativa de danos esperados no porvir, o que resulta em um reconhecimento implícito de que tais danos são passíveis de compensação hoje.

Para tanto, não é necessário admitir que pessoas que ainda não existem de fato têm direitos subjetivos hoje — algo que careceria de referência explícita na prática jurídica dominante, e é visto com estranheza por teóricos como F. Coomans e A. Gosseries. De acordo com esse raciocínio, quando, por exemplo, a Declaração da Unesco sobre as responsabilidades das gerações presentes em relação às futuras menciona que temos uma obrigação de preservar a humanidade, isso não implica que tal obrigação seja baseada em direitos. Se descobríssemos que, por algum motivo, a espécie humana não existiria mais em 2200, não cogitaríamos consequentemente a violação de direitos em tal data. Todavia, poderíamos dizer que, para nós que existimos hoje e que desejamos que a humanidade continue a existir, a extinção seria terrível (literalmente o fim), o que justificaria a adoção de medidas de precaução e de prevenção imediatas para evitá-la.

Consequentemente, quando falamos, por exemplo, nos direitos dos que existirão em 2100, estamos, na realidade, referindo aos direitos e aos interesses de pessoas que existem hoje em relação aos indivíduos que vão existir em 2100 — i.e., nosso altruísta desejo de que os seres humanos vivos em 2100 venham a ter uma vida digna, saudável e usufruam de um clima estável. Afinal, as gerações futuras, de algum modo, estabelecerão relações conosco, diretas ou não – pois, à medida que envelhecermos, elas se tornarão responsáveis por nossa dívida pública, nossa previdência, nossos cuidados médicos, etc. Assim, a proteção dos que virão a existir está vinculada à proteção dos direitos e dos interesses das gerações atuais. Nessa linha, ao estipular um valor para a emissão de gases de efeito estufa num caso de dano ambiental, o objetivo é manter a coerência com compromissos já assumidos — como os definidos no Acordo de Paris. Isso é consistente com a abordagem target-consistent pricing (v., p. ex., Stern et al., 2022) para o custo do carbono: ao causar dano ambiental e emitir gases de efeito estufa, o poluidor utiliza indevidamente nosso carbon budget, criando um custo para o restante da sociedade, a qual terá de reduzir ainda mais suas emissões — e é este custo que a indenização deve compensar.

Porém, será mesmo tão estranho falar em direitos das gerações futuras — apenas porque ainda não existem? Imagine que os pais de duas crianças estão processando o governo pois elas tiveram uma má-formação causada por um acidente nuclear, ou adoeceram em razão de cortes no orçamento para saúde infantil, ou não puderam estudar por causa do fechamento de escolas; nestes casos, diríamos que os direitos dessas crianças foram violados por uma ação ou omissão do governo. Agora considere que a mais jovem das crianças ainda não havia sido concebida quando tal evento ocorreu; que diferença isso faz? Estaríamos dispostos a dizer que apenas a mais velha teve um direito violado?

Por essa lógica, a noção de "obrigação" é mais primitiva que a de "direito" — até porque a ação precede os efeitos correspondentes [3]; falar em violação de direitos serve para referir as pessoas que sofrem com ações e omissões alheias — destacando que é em benefício do titular do direito que a obrigação existe. Afinal, há casos cotidianos de violação de obrigações sem violação de direitos individuais: p. ex., o condutor que dirige embriagado numa estrada vazia, viola uma obrigação de cuidado por criar um risco para as demais pessoas; e, se a estrada não estivesse vazia, o mesmo condutor assumiria o risco concreto de violar os direitos de outrem. Assim, pode-se dizer que há um direito difuso à segurança no trânsito, que é violado quando o condutor dirige de forma imprudente, e que, em caso de acidente, justifica a concretização de um direito individual violado da vítima. Analogamente, ao emitir gases de efeito estufa, o poluidor viola uma obrigação (um direito difuso a um ambiente saudável) e cria um risco de dano aos demais seres humanos; e, como defende o filósofo J. Broome, isso implica uma obrigação jurídica de compensar essas emissões e/ou os danos esperados correspondentes — em benefício de quem os sofrerá.

Talvez nossa resistência em reconhecer os direitos das gerações futuras, mesmo que num porvir distante, decorra menos de mesquinhez que do fato de que nossa cultura não está habituada a pensar racionalmente sobre o futuro: até poucas décadas, as sociedades humanas não tinham quase nenhuma capacidade de produzir ou estimar efeitos relevantes, de suas ações e de suas omissões, sobre as gerações futuras.

Mas isso não se aplica as gerações atuais: podemos inferir, com confiança razoável, que fatores como uma economia baseada em emissões de carbono, ou o conflito latente entre as nações aptas a utilizar armas de destruição em massa, ou a dificuldade em prevenir e conter epidemias — apenas para citar temas do momento — constituem graves riscos, criados por gerações passadas e presentes, que, cedo ou tarde, vão causar catástrofes [4]. Referidos riscos ameaçam os direitos dos indivíduos existentes e, com ainda maior probabilidade, dos que virão a existir. É intuitivo, portanto, que se mitigarmos tais riscos, beneficiaremos as pessoas não apenas no presente mas, principalmente, no futuro.

Provavelmente, as gerações futuras estarão na posição de julgar e criticar nossa resistência em reconhecer seus direitos e não o farão por autointeresse, já que os vivos pouco têm a ganhar ao apontar as falhas dos mortos. Infelizmente, nem todos reprovam nossos antecessores pela prática da escravidão, dentro de um prisma utilitário manifestamente equivocado, mas quase todos reconhecem, nesse ponto, que nossas sociedades aprenderam com este grave erro institucionalizado, que pode ser considerado, sem dúvida, um irreparável crime contra a humanidade. Isso nos leva a reconhecer princípios de justiça climática que poderão ser utilizados para julgar eventos atuais, como a ainda existente e malsinada discriminação, que coloca os pobres e as minorias em posição de vulnerabilidade [5]. Em suma, podemos dizer que os que nos precederam cometeram injustiças cujos efeitos persistentes até hoje causam danos às nossas sociedades, e os que nos sucederem poderão dizer — quiçá com maior propriedade — que os prejudicamos por nossa miopia e indiferença quanto a uma consistente política de boa governança climática.

 


[1] Sobre o tema, ver: WEDY, Gabriel. Litígios climáticos: de acordo com o direito brasileiro, norte-americano e alemão. 2ª ed. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2023; WEDY, Gabriel; SARLET, Ingo; FENSTERSEIFFER, Tiago. Curso de Direito Climático Brasileiro. São Paulo: Gen Jurídico, 2023 (no prelo); AYALA, Patrick de Araújo. Direito das mudanças climáticas: normatividade e princípios para a justiça ecológica no direito nacional e internacional. Curitiba: CRV, 2022; GAIO, Alexandre (org.). A política nacional das mudanças climáticas. Belo Horizonte, Abrampa, 2021; BORGES; Caio; VASQUES, Pedro Henrique. STF e as mudanças climáticas: contribuições para o debate sobre o Fundo Clima (ADPF 708). Rio de Janeiro: Editora Telha, 2021; CUNHA, Kamila; BOTTER, Amália F; SETZER, Joana. (Org.). Litigância Climática – Novas fronteiras para o Direito Ambiental no Brasil. 1ed.São Paulo: Thomson Reuters, 2019.

[2] Em relação ao tema, ver: SUNSTEIN, Cass. The Cost-Benefit Analysis: the Future of Regulatory State. Chicago: American Bar Association, 2002.

[3] Uma possível fonte de confusão é a ambiguidade do termo "existir": num sentido, ele denota a propriedade de um objeto, algo como sua "permanência" (assim, diz-se que não existimos até nascer, e que deixamos de existir ao morrer). Em outro sentido, atemporal, trata-se de um "quantificador lógico", que denota que a extensão de um determinado conceito não é vazia (e.g., "existe um número primo par").

Assim, podemos dizer que, de acordo com esta acepção de "existir", existem direitos das gerações futuras (i.e., alguns fatos jurídicos satisfazem as condições do conceito de direito e se aplicam a gerações futuras), embora os indivíduos a que tais direitos se referem ainda não existam (de acordo com a segunda acepção, não estão vivos). Isso quer dizer algo como: para qualquer x tal que x vive em 2200, existem obrigações nossas para com x que correspondem a direitos de x.

Se uma pessoa negar que tais direitos existem hoje, mas estiver de acordo que já temos obrigações tais que, se não as cumprirmos, implicarão uma futura violação de direitos (quando os indivíduos correspondentes vierem a sofrer os respectivos efeitos), e que isso justifica hoje medidas para evitar tais violações ou mitigar seus efeitos, então compartilhamos as mesmas conclusões práticas, e é provável que nosso desacordo seja meramente semântico — i.e., estamos utilizando os termos "existir" (e quiçá "direitos") em sentidos distintos.

[4] Em relação ao Direito dos Desastres, para uma análise em sede de direito comparado, ver: SUNSTEIN, Cass. Averting Catastrophe: Decision Theory for COVID-19, Climate Change, and Potential Disasters of All Kinds. New York: NYU Press, 2021; FITZPATRICK, Daniel; COMPTON, Caroline. Law, Property and Disasters. London: Routledge, 2021. Entre outras, no direito brasileiro, consultar: WEDY, Gabriel. O princípio constitucional da precaução: como instrumento de tutela do meio ambiente e da saúde pública (de acordo com o direito das mudanças climáticas e o direito dos desastres). 3a. ed. revista, ampliada e atualizada. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2020; DAMACENA, Fernanda Dalla Libera. Direito dos Desastres e Compensação Climática no Brasil. São Paulo: Lumen Juris, 2019; JÚNIOR, Paulo Bento Forte; NETO, Saraiva Pery (Org.). Estudos multidisciplinares sobre o direito dos desastres. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2021.

[5] Sobre o tema, consultar: WILLIANS, Jeremy. Climate Change is Racist: Race, Privilege and the Struggle for Climate Justice. London: Icon Books, 2021; COX, Stan. The Path to a Livable Future: A New Politics to Fight Climate Change, Racism, and the Next Pandemic. San Francisco: City Light Publishers, 2021; TONEY, Heather McTeer. Before the Streetlights Come On: Black America’s Urgent Call for Climate Solutions. Minneapolis: Broadleaf Books, 2023; SINGER, Merryl. Climate Change and Social Inequality: The Health and Social Costs of Global Warming. London: Routledge Advances in Climate Change Research, 2018.

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    é juiz federal, membro do grupo de trabalho "Observatório do Meio Ambiente e das Mudanças Climáticas", do CNJ, professor do PPG em Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, pós-doutor, doutor e mestre em Direito, visiting scholar pela Columbia Law School e pela Universität Heidelberg, integrante da IUCN World Comission on Environmental Law (WCEL), diretor de Assuntos Internacionais do Instituto O Direito Por um Planeta Verde e ex-presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe).

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    é analista do Banco Central, pós-doutorando na Universidade Nova de Lisboa, vice-coordenador do GEP Riscos Globais (Ieac/Unifesp) e associado da Associação Soluções Inclusivas Sustentáveis (SIS).

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    é Ph.D. e fundadora da Soluções Inclusivas Sustentáveis (SIS).

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