Antigos estoicos, como o imperador romano Marco Aurélio e o ex-escravo Epiteto, tinham um exercício mental chamado premeditatio malorum – a visualização negativa, ou “antecipação da adversidade”. Trata-se de refletir sobre o que tememos que ocorra, como doença, sofrimento, a morte de entes queridos, etc. Para esses filósofos, além da preparação para o pior, isso permite focar no que é mais relevante e que tem valor mesmo que nossos medos se materializem; e ajudaria a ver que, mesmo nas piores situações, ainda temos controle sobre nossos pensamentos e atitudes, podendo agir de acordo com a virtude – o que, para eles, é o que realmente importa.

Eu me pergunto se essa prática ainda seria recomendável para os dias atuais. Mesmo que nossas vidas sejam, em média, significativamente melhores do que as da Roma Antiga, é plausível que esse exercício tenda a evocar mais ansiedade que serenidade. Um cidadão romano geralmente temia a desonra, a escravidão, ou mesmo a destruição de sua cidade (e esses riscos eram bem concretos); nesses casos, outro exercício recomendado por estoicos é assumir uma perspectiva cosmopolita, ou mesmo “cósmica”, enxergando-nos e a nosso entorno como parte de um todo maior, da espécie humana e de um mundo que persiste para além de nós, diminuindo assim a importância relativa desses temores. Mas a ideia de um universo bem-ordenado da filosofia antiga foi sepultada pela ciência moderna, e hoje qualquer um de nós pode conceber o que o Prof. Alexey Dodsworth, seguindo Hans Jonas, chama sumum malumo próprio colapso da civilização e a extinção da humanidade – a exemplo do simplório pescador interpretado por Max von Sydow em Luz de Inverno, que se desespera com a possibilidade de uma guerra nuclear. Nem precisamos ver um filme de Bergman para ter uma crise existencial semelhante; muitos passaram por algo assim durante a recente pandemia, e outros têm um sentimento parecido em relação à catástrofe climática (como Jonathan Franzen na piauí 157, E se parássemos de fingir?). Cenários ainda mais dramáticos são mostradosem séries pop recentes como Carol e o fim do mundo e o aguardado O problema dos três corpos.

Ao invés de oferecer consolo, filósofos contemporâneos destacam que temos ainda mais a perder além das bilhões de vidas que seriam perdidas. Em What we owe the future (“O que devemos ao futuro”, em tradução a ser lançada pela Planeta neste ano), Will MacAskill ensina que também perderíamos todo o potencial valor do futuro da civilização humana – as incontáveis vidas que poderiam existir, em situações tão distintas da nossa quanto nós hoje somos diferentes dos antigos romanos. Já Samuel Scheffler, em Death and the Afterlife, argumenta que, como boa parte do valor de nossas vidas depende de coisas que ocorrerão após nossas mortes, a perspectiva de extinção futura nos roubaria esse valor. Imaginar que outros humanos continuarão por aqui depois de mim permite dar relativamente menos importância a minha limitada existência individual, e mais ao que está “além de mim” – o que me consola a respeito de minha mortalidade, e me faz querer ser lembrado de forma positiva por gerações futuras. Isso se perderia caso descobrisse que somos a última geração. 

Por outro lado, é claro, pensar seriamente sobre o pior pode ajudar a evitá-lo. Antes de se juntar a ricos sobrevivencialistas na Nova Zelândia (descritos por Evan Osnos em É o fim do mundo, piauí 127), pode ser interessante conversar com burocratas de gestão de riscos. Nos EUA, desde um ano atrás, uma lei obriga o Departamento de Segurança Interna e a Agência Federal de Gestão de Emergências a analisarem riscos catastróficos globais sistematicamente. De modo afim, a Avaliação Nacional de Risco do Reino Unido também inclui algumas dessas ameaças, por mais que sejam improváveis.  No Brasil, poderíamos refletir sobre o tema em discussões sobre o Plano Clima e sobre o Plano Nacional de Proteção e Defesa Civil; e poderíamos aproveitar as reuniões do G20 e, no ano que vem, a COP-30 para abordar o tema com outros países.

Além disso, uma avaliação mais fria permite dimensionar o quão improváveis são esses cenários, em especial a extinção; na maioria dos cenários catastróficos, a despeito de todo sofrimento, ainda haveria pessoas com vidas dignas de serem vividas (ao menos da perspectiva delas – muitos de nós estão acostumados demais aos confortos da civilização moderna para apreciar a rotina pós-apocalíptica). Isso sugere a importância de preservar alguns aspectos de nossa cultura que possam afetar positivamente a trajetória futura da sociedade – como tecnologias, recursos naturais, ideias e bens culturais.

Mesmo a nossa extinção não implicaria a destruição de toda vida inteligente; a vida em outros planetas, caso exista, não seria afetada. Essa tem sido apontada como a principal razão para a expansão extraplanetária: criar colônias espaciais como “plano B”. Contudo, em A City on Mars, o casal de geeks Zach e Kelly Weinersmith argumenta que, apesar de todo o hype, uma expansão precoce poderia trazer mais riscos do que benefícios – se, p. ex., aumentasse as chances de conflitos. Por um bom tempo, não deve haver “Planeta B” para nós.

Mas considere o paradoxo de Fermi: se a galáxia existe há tanto tempo, e se há tantas estrelas e planetas lá fora, é provável que haja surgido vida em outros lugares, e que ela tenha se expandido; mas então, por que não encontramos sinal dela? Uma possibilidade, explorada nos livros que deram origem à série O problema dos três corpos, é que o Universo seja um lugar perigoso; mais cedo ou mais tarde, espécies avançadas seriam atingidas pelo que astrobiológos chamam de “Grande Filtro”. Talvez a vida inteligente seja algo frágil ou tenha uma tendência à autodestruição; é o que poderíamos concluir, ao encontrar indícios de uma extinta civilização não-humana. Portanto, se (ou melhor, quando) um dia formos extintos, seria interessante que alguns registros humanos sobrevivessem e que, caso em algum momento haja outra vida inteligente no universo, ela tenha uma chance de encontrá-los. Tais registros seriam o último (e quiçá mais importante) impacto que a humanidade teria sobre o universo, transmitindo, ainda que implícito, um aviso benevolente: “Nós existimos, e perecemos; isso pode ter ocorrido a outros, e pode vir a ocorrer a vocês”.

Finalmente, quero registrar que simpatizo com as mentes pragmáticas que tendem a sentir alguma aversão ao caráter especulativo dessas reflexões; caso o leitor seja uma delas, agradeço a paciência de ler-me até o fim. Essas pessoas estão protegidas da ansiedade que esse exercício pode gerar; por outro lado, podem estar mais suscetíveis ao desespero ou confusão quando o próximo “imponderável” ocorrer, como o pescador de von Sydow. Eu certamente não gostaria que todos pensassem da mesma forma; mas desconfio que, se aqueles em situações de poder considerassem seriamente (ou escutassem os que o fazem) o risco de catástrofes globais, estaríamos mais seguros – talvez até menos divididos. E isso concedo aos estoicos: sinto grande admiração, até inveja, pela pessoa que pode contemplar seriamente a possibilidade de que o mundo acabe, sem sentir arrependimentos – sabendo que mesmo isso não subtrai o valor de suas ações.

Comments1


Sorted by Click to highlight new comments since:

Li tudo, muito bacana sua reflexão, eu particularmente tento praticar na minha vida pessoal boa parte das ideias de epicuro. O que eu n posso controlar eu n deveria "sofrer psicologicamente", simplesmente n faz sentido. 
Acho que muitas coisas do estoicismo/epicurismo se fossem mais difundidas ajudaria muito esse mundo, outra coisa é o hiperconsumo e a cultura da ostentação (essa que é espalhada por nossa propaganda do sistema capitalista)... Acho que isso é um problema enorme que causa efeitos colaterais terriveis e pouco se fala sobre...
Te mandei uma mensagem no facebook.

Curated and popular this week
 ·  · 10m read
 · 
I wrote this to try to explain the key thing going on with AI right now to a broader audience. Feedback welcome. Most people think of AI as a pattern-matching chatbot – good at writing emails, terrible at real thinking. They've missed something huge. In 2024, while many declared AI was reaching a plateau, it was actually entering a new paradigm: learning to reason using reinforcement learning. This approach isn’t limited by data, so could deliver beyond-human capabilities in coding and scientific reasoning within two years. Here's a simple introduction to how it works, and why it's the most important development that most people have missed. The new paradigm: reinforcement learning People sometimes say “chatGPT is just next token prediction on the internet”. But that’s never been quite true. Raw next token prediction produces outputs that are regularly crazy. GPT only became useful with the addition of what’s called “reinforcement learning from human feedback” (RLHF): 1. The model produces outputs 2. Humans rate those outputs for helpfulness 3. The model is adjusted in a way expected to get a higher rating A model that’s under RLHF hasn’t been trained only to predict next tokens, it’s been trained to produce whatever output is most helpful to human raters. Think of the initial large language model (LLM) as containing a foundation of knowledge and concepts. Reinforcement learning is what enables that structure to be turned to a specific end. Now AI companies are using reinforcement learning in a powerful new way – training models to reason step-by-step: 1. Show the model a problem like a math puzzle. 2. Ask it to produce a chain of reasoning to solve the problem (“chain of thought”).[1] 3. If the answer is correct, adjust the model to be more like that (“reinforcement”).[2] 4. Repeat thousands of times. Before 2023 this didn’t seem to work. If each step of reasoning is too unreliable, then the chains quickly go wrong. Without getting close to co
JamesÖz
 ·  · 3m read
 · 
Why it’s important to fill out this consultation The UK Government is currently consulting on allowing insects to be fed to chickens and pigs. This is worrying as the government explicitly says changes would “enable investment in the insect protein sector”. Given the likely sentience of insects (see this summary of recent research), and that median predictions estimate that 3.9 trillion insects will be killed annually by 2030, we think it’s crucial to try to limit this huge source of animal suffering.  Overview * Link to complete the consultation: HERE. You can see the context of the consultation here. * How long it takes to fill it out: 5-10 minutes (5 questions total with only 1 of them requiring a written answer) * Deadline to respond: April 1st 2025 * What else you can do: Share the consultation document far and wide!  * You can use the UK Voters for Animals GPT to help draft your responses. * If you want to hear about other high-impact ways to use your political voice to help animals, sign up for the UK Voters for Animals newsletter. There is an option to be contacted only for very time-sensitive opportunities like this one, which we expect will happen less than 6 times a year. See guidance on submitting in a Google Doc Questions and suggested responses: It is helpful to have a lot of variation between responses. As such, please feel free to add your own reasoning for your responses or, in addition to animal welfare reasons for opposing insects as feed, include non-animal welfare reasons e.g., health implications, concerns about farming intensification, or the climate implications of using insects for feed.    Question 7 on the consultation: Do you agree with allowing poultry processed animal protein in porcine feed?  Suggested response: No (up to you if you want to elaborate further).  We think it’s useful to say no to all questions in the consultation, particularly as changing these rules means that meat producers can make more profit from sel
Thijs Jacobs
 ·  · 28m read
 · 
TL;DR: During a research stint at AIM the idea of a policy charity advocating for a ban or limitation of fish stocking in Canada was evaluated. Fish stocking is the practice of releasing cultured fish into natural water bodies to maintain or enhance fish populations. The idea was dropped as the probability of policy success was estimated to be merely 5% and the uncertainty is large, including doing harm with the intervention. These major uncertainties concerned key factors like fish suffering levels, re-catch rates of the stocked fish, and effects on wild populations, making it too risky to pursue. Epistemic status After researching this idea for about 100 hours, I am fairly certain that it is not worthwhile to pursue advocacy efforts against Salmon stocking in Canada. Do note that this is dependent on a bunch of subjective judgements, and one's risk appetite.  This research was done as part of the AIM Research Program, so keep that in mind. Whilst the findings were sense checked by the AIM research team, I have limited research experience of this type. Lastly, certain findings likely shift whenever different fish-species, fish stocking amounts and practises, geographical contexts or political contexts are considered[1]. This might also change the overall conclusion, i.e. it might be a worthwhile pursuit in other contexts Credits Attention to this intervention came via a country report from Animal Ask on potential effective interventions in Canada. Noteworthy progress on this topic from an animal welfare perspective was first made by Rethink Priorities in 2019. I would like to thank those authors for bringing this topic to the forefront in the way they did. I would like to thank Koen van Pelt and George Bridgewater for their feedback on an earlier draft of this post. Special appreciation to Vicky Cox for excellent guidance, mentorship and frequent back and forth during the research program. Mistakes are my own. Other introductory notes The majority of this pos